Precisamos falar sobre… estupro!

Pouco a pouco o tema da violência sexual tem ganhado mais espaço e atenção da sociedade, especialmente a partir de casos emblemáticos ou eventos midiáticos, que acabam por repercutir em discussões, muitas vezes polêmicas e controversas, nas redes sociais. A subnotificação desse tipo de crime ainda é, contudo, uma realidade mundial. Entre as razões para esse fato, os movimentos que lutam pela erradicação desse tipo de violência indicam, como uma de suas grandes preocupações, a quantidade de opiniões desinformadas e atitudes marcadamente ofensivas que aparecem com frequência nas discussões sobre o tema. 

Sensíveis a essa questão, cientistas que tem se dedicado a estudar esse fenômeno têm observado que a maneira como um caso de violência sexual é descrito, e os termos usados para rotular o episódio estão intimamente relacionados com a percepção que vítimas, agressores e comunidade apresentam. De acordo com pesquisas da área, o não reconhecimento de casos de violência sexual como estupro¹ pode acarretar uma série de implicações: de modo geral, pessoas que não reconhecem sua experiência de violência como estupro tendem a falar menos com sua rede de apoio (família e amigos) sobre o caso, o que leva a uma menor probabilidade de conseguir apoio e acompanhamento e, consequentemente, a um aumento do risco do desenvolvimento de problemas psicológicos. Nesse sentido, acredita-se que o não reconhecimento da violência tem levado a uma subestimação do número de casos e de sua persistência. 

Além disso, outras pesquisas têm mostrado que as pessoas tendem minimizar as agressões e a “culpabilizar” mais as vítimas de episódios de violência sexual nos casos em que não o identificam como um estupro estereotípico (e.g. casos em que o agressor é um estranho, que utiliza de coerção física, e em que a vítima oferece clara resistência física). Atitudes nesse sentido inscrevem-se em um tipo de postura que tem sido chamada de “Aceitação do Mito do Estupro”, que consiste basicamente em um conjunto de argumentos e atitudes no sentido de atribuir a responsabilidade pela violência a alguma característica que pode ser ou não física, e que implica, geralmente, em julgamentos de cunho moral (muito provavelmente você já deve ter lido ou ouvido absurdos como: “Se ela realmente quisesse, poderia ter escapado”, ou “Mas também, vestida assim, estava pedindo pra acontecer algo”, ou ainda “Ela está exagerando, não foi tudo isso. Está mentindo só porque se arrependeu depois.”). 

Desse modo, os pesquisadores da área chamam atenção ao fato de que apesar de ser altamente recomendável o incentivo às vítimas para que relatem seus casos e busquem apoio, é preciso se atentar também ao modo como as pessoas que recebem esses relatos percebem a situação, pois a reação negativa à revelação dos casos tem se mostrado correlacionada com um aumento das chances de auto-culpabilização e de desenvolvimento de problemas psicológicos, bem como à diminuição da probabilidade de denúncia à polícia por parte das vítimas. 

Diante dessas considerações, a compreensão dos fatores que influenciam a rotulação de um caso de violência sexual como estupro e as interpretações que esse rótulo pode evocar mostram-se bastante relevantes para o entendimento do fenômeno, o combate à manutenção e legitimação desse tipo de violência, bem como o desenvolvimento de estratégias para aumentar o escopo e alcance do apoio às vítimas. Esse foi o mote para o trabalho de Sapir Sasson e Lisa A. Paul da Northern Illinois University, publicado na Behavior and Social Issues em 2014. Baseando-se nas discussões da literatura, os autores buscaram investigar quatro hipóteses: 1) as descrições mais próximas de um caso estereotípico de estupro teriam maior probabilidade de serem rotuladas como estupro; 2) quanto maior a empatia com as vítimas, a maior a rotulação das descrições como estupro; 3) quanto maior empatia pelo agressor e “Aceitação do Mito do Estupro”, menor probabilidade de nomear as descrições estupro; e por fim, 4) quanto maior a rotulação das descrições como estupro, maior atribuição de responsabilidade ao agressor.

Por meio de um questionário hospedado em uma página na internet, os pesquisadores analisaram as respostas de 379 participantes, de ambos os sexos, maiores de dezoito anos. Antes de responderem às questões, os participantes liam a descrição de um caso hipotético de violência sexual. Foram usadas 16 descrições diferentes. Todas elas descreviam um caso de estupro, mas variavam em termos das características do episódio (agressor ser conhecido ou desconhecido da vítima; agressor usar ou não de força física; vítima oferecer ou não resistência). Após a leitura, os participantes deveriam indicar qual termo usariam para rotular o episódio descrito, bem como a quem atribuíam a responsabilidade pelo caso. Em seguida, passavam a responder às perguntas do questionário elaborado a partir de instrumentos indicados na literatura para as variáveis elencadas nas hipóteses (atribuição de responsabilidade pelo episódio; Aceitação de Mitos do Estupro; empatia com a vítima de estupro; empatia com o perpetrador do estupro; e questões com respeito ao histórico de vitimização, ou contato com vítimas de violência sexual). O diferencial desse estudo, como apontam os autores, foi o fato de tomar uma amostra demograficamente representativa, que incluía vítimas e não vítimas, avançando também na compreensão da percepção não só de vítimas (comumente o foco das pesquisas anteriores), mas também de potenciais receptores de relatos.

Os resultados obtidos não corroboraram a primeira hipótese, ou seja, as diferenças em aspectos relacionados a uma descrição mais ou menos estereotípica (menção do uso de força física vs. não menção; agressor ser um desconhecido vs. ser um conhecido) não implicaram em uma diferença significativa na rotulação como estupro ou não. Como possibilidade para explicar esse resultado, os autores consideram a mudança de compreensão ou de elementos atribuídos a uma situação estereotípica de estupro, fruto do maior debate sobre o tema atualmente. 

Já as demais hipóteses foram corroboradas. Consistentemente com a segunda e terceira hipóteses, a rotulação da descrição como estupro esteve correlacionada com maior pontuação na escala de empatia com as vítimas, e menor pontuação nas escalas de empatia com os agressores e de “Aceitação dos Mitos do Estupro”. Em relação à quarta hipótese, os participantes que rotularam a descrição como estupro apresentaram menor probabilidade de atribuir responsabilidade às vítimas que aqueles que não identificaram as descrições como estupro. 

Os efeitos do uso de determinados termos em detrimento de outros (e.g. rotular o episódio como estupro ou abuso) para a compreensão e atribuição da responsabilidade a agressores ou vítimas trata-se de um achado relativamente novo, e bastante relevante, em vista do impacto que isso mostra ter na percepção dos casos, especialmente nas situações em que os termos usados tendem a “culpabilizar” as vítimas. Os resultados encontrados nesse estudo somam-se às demais investigações na área na construção de uma compreensão mais acurada dos fatores envolvidos no modo como a violência sexual é percebida e descrita. Como apontam Sasson e Paul (2014), “Um melhor entendimento dos fatores que podem influenciar a rotulação de um ato de violência sexual é importante para melhorar as respostas às vítimas e expandir o conhecimento disponível sobre o escopo da violência sexual”.

Créditos da imagem:

(https://www.facebook.com/DontTellMeWhatToWeartellThemNotToRape/photos/a.309569289154880.66174.309566345821841/309569309154878/?type=3&theater

Escrito por Henrique Pompermaier.

2 comentários sobre “Precisamos falar sobre… estupro!

  1. ~*AS* autorAs~ do estudo. Não levou 30 segundos de pesquisa no Google pra descobrir que foram duas mulheres que fizeram esse trabalho, sem precisar assumir que eram homens pelo simples fato de não saber quem são.

Deixe um comentário

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Saiba como seus dados em comentários são processados.